Por Andressa Marques
aandressammarques@gmail.com
A arrumação dominical da minha casa teve como fundo musical o álbum do Rodrigo Ogi, As crônicas da cidade cinza, lançado ano passado e que foi das melhores criações que chegou até mim em 2011. Entre colocar a roupa no varal e limpar os móveis, minha cabeça deu um giro por Sampa, suas ruas e as dificuldades impostas pela mesma e que vi sendo impressas por outrxs artistas em suas obras. Imediatamente, meus pensamentos caíram no livro que mais bem quisto por mim nos últimos tempos, Ninguém é inocente em São Paulo, de Ferréz, lançado em 2006.
Ferréz escreve na “Bula” de seu livro Ninguém é inocente em São Paulo: “eternos amigos que continuam a me contar suas histórias, que sempre estão ao meu lado”. No mesmo tom, Rodrigo Ogi, citando Plínio Marcos, finaliza suas Crônicas da Cidade Cinza: “Eu conto histórias. Histórias que eu vi com esses olhos que a terra há de comer um dia, ou histórias que eu ouvi, no buxixo das curriolas”. Narrativas que têm como pano de fundo a SP sem amor para uns e que imprime dilemas cotidianos em seus habitantes. São muitas as personagens criadas pelos dois artistas: o motoboy que precisa ser safo para dar conta de seu trabalho tão arriscado, o tiozinho dono do bar que não agüenta mais os boyzinhos da faculdade falando em revolução, o PM que pode não voltar para sua casa depois de um dia de trabalho, o cachorrinho pensante que muda de um prédio luxuoso para morar na favela junto com seu novo dono escritor, o safo malandro que encara toda a gangue do Zé Medalha sem fugir da briga, o cara que paga um lanche no Habibs para dois meninos moradores de rua que não podiam nem comer e nem brincar no barco viking do estabelecimento, o cidadão que se vê como concorrente de si dentro em uma corrida de ratos cheio de carnês pra pagar e uma família pra sustentar, o grupo de rap que é entrevistado por um jornalista que tem pânico da periferia, o bandido que tem a premonição que naquela noite a missão seria fracassada e desiste da investida, o repositor de estoque do Pão de Açúcar humilhado por seu chefe e muitas, muitas, muitas outras vozes que contemplam o universo paulista periférico e que agora adentram ao mundo literário como protagonistas.
Quando ouvi o disco do Ogi, as imagens velozes por ele ali reunidas me transpuseram prontamente para um cenário cinematográfico. As crônicas rap do Ogi e os contos de Ferréz dialogam visceralmente, cada uma em seu veículo, mas ambas com a tarefa de representar a multiplicidade de vidas engolidas pela imensidão cinzenta, mas que articulam suas possibilidades em meio ao caótico. Alessandro Buzo, em Hip Hop: dentro do movimento (2010), diz que sua produção integra o quinto elemento do hip hop, o conhecimento, este que reúne a produção de livros e filmes. As diversas manifestações desse movimento são cada vez mais simbióticas (por exemplo, a capa da mixtape de Ogi trás uma arte dos irmãos grafiteiros Os Gêmeos) e são essas aproximações que vejo fortemente na literatura escrita e a cantada de Ferréz e Ogi.
O primeiro conto de Ferréz “Fábrica de fazer vilão” nos arranca do comodismo logo de cara, trata-se de um episódio em que a violência policial é levada ao extremo e toda uma família negra é humilhada. O conto narrado em primeira pessoa tem como sujeito de enunciação um rapper acusado de ser vagabundo por parte dos policiais que invadem sua casa, ao que ele que responde: “sou trabalhador”. Essa frase guarda consigo a dignidade de toda uma classe economicamente desfavorecida e atua como mote e ordem do dia das várias personagens das duas obras. Nesse conto de Ferréz, os policiais ameaçam atirar em alguém daquela família, mas não efetivam o assassinato, a diversão deles ali era instaurar o medo. Já a faixa 10 do álbum de Ogi, Noite fria, narra uma cena na qual a personagem, não por acaso, é ouvinte do Sabotage e sai com parceiros na madrugada em busca do “corre” da noite e acaba se deparando com a polícia que o espanca e depois o mata. As repetidas histórias do cotidiano não só de São Paulo, mas de todo um país marcado pelo racismo da polícia que se esconde atrás dos “autos de resistência” são denunciados e problematizados pelos dois artistas.
O meio do caminho do rapaz que é trabalhador, mas se vê engessado pelo desemprego é tema da faixa “A vaga” (a melhor, na minha opinião). A narrativa conta o dia de um jovem que se vê diante de portas constantemente fechadas e que enfrenta a vontade de fazer o jogo virar repentinamente, do jeito que der pra fazer isso ocorrer. A personagem pensa em roubar o iphone da minazinha que moscou, mas sua consciência, com voz de Mano Brown, grita: “a vaga tá lá esperando você”. O alerta, acerca da vaga indesejada, dado no diário do ex-detento Jocenir se contrapõe a tão almejada vaga de emprego que é o anseio presente no conto “No vaga”, de Ferréz. As histórias de dois amigos desempregados e suas esperanças compõem o enredo desse conto. Ambos reclamam da dificuldade de serem fichados em algum emprego, e diante do entrave, aceitar cair conscientemente na lorota das empreitas duvidosas é a saída vislumbrada pelos mesmos. Antes ser contratado investindo seu próprio e pouco dinheiro no negócio, do que não ser contrato de forma alguma. O narrador da música do Ogi encontra sua vaga de limpador de candelabro, os jovens de Ferréz topam vender três planos dentários para, então, serem contratados e assim, forjando resistências, esses jovens arquitetam vagas para as corajosas vidas encaradoras do concreto armado.
A faixa que inicialmente mais me empolgou nas crônicas foi “Os tempos mudam”, parceria do Ogi com a Lurdez da Luz e que enuncia mudanças significativas no cenário social. Os dois cantam no refrão que os tempos já não são mais os mesmos e avisam: “se prepare, pois seu mundo também vai mudar”. Insistir em machismos, preconceitos, misoginias e afins é tolice, os tempos mudarão para todxs e essa já é a realidade de muitas mulheres (esperança e luta diária). No conto “O plano”, Ferréz faz uma breve descrição de uma mulher da periferia dizendo que a mesma está em pé no ônibus lotado, mais de meia noite, com cadernos no braço e conclui que achar como aquela em outro lugar é quase impossível. Somos múltiplas (nozes) em muitos espaços e encontrar representações que fogem do lugar comum para a mulher periférica é só o ouro, não preciso nem dizer isso para não ser repetitiva. Ogi e Ferréz contemplam (ainda que isso precise aumentar quantitativamente) as vozes dissonantes femininas em suas narrativas, seja na representação de uma que atua como chefe de família e tem seu marido em casa cuidando dos afazeres domésticos (o que traz para a pauta do rap a troca dos papéis socialmente construídos para os gêneros), seja na guerreira solitária que enfrenta jornada tripla de trabalho fora, estudo e afazeres domésticos para dar conta de sua sobrevivência nas cidades cinzas.
A narrativa que conta a trajetória de um retirante nordestino comunica diretamente com a vida de tantas famílias, vejo a minha ali também, trata-se da faixa “Eu tive um sonho” na qual Ogi canta ,com sotaque, a saga de um senhor que concretizou sonhos em meio ao cinza. Essa narrativa se entrecruza com a do pai do próprio Ferréz que recebe sua carta no conto “Assunto de Família”: “Sabe, Pai, o senhor deve estar jogando dominó ou baralho em algum barzinho, num canto de algum gueto, é o seu jeito, né não?” (2006: 79). Repentes de vencedores.
São muitas as conversas entre essas obras, aproximações, dialogismos , construções de novos cenários, vozes dissonantes, representações múltiplas de vidas são matérias desses artistas que imprimem em suas criações as angústias e também levezas de uma cidade intrigante. Tudo isso sedimentando, cada um em sua especialidade, uma forma de contar menos excludente e mais rica diante das diversas facetas das muitas verdades e mentiras também. Quem ainda não leu Ferréz ou ouviu Rodrigo Ogi que faça isso, deixo a dica, ninguém é inocente na cidade cinza.
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quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012
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Parabéns pela publicação, Andressa!
ResponderExcluirAbraço
Teu texto ficou muito bom.
ResponderExcluirAcabei de baixar a mixtape do Ogi e vou ouvir quando chegar em casa. Já o livro do Ferréz acho que é um pouco mais difícil conseguir ler, mas vou tentar achar.
Valeu!!!
Logicamente, mesmo eu sendo uma pessoa que não tem o hábito pelo estilo de leitura em questão que você faz e transmite, acredito que encontramos aí um texto verídico e coeso, não só para você, mas também para alguns leitores do seu blog. Com certeza, várias pessoas identificam-se com seus textos...
ResponderExcluirMuito bom, Andressa!
Ah! Obrigada pela dica!!! rs
Beijão!
Vale perguntar para o proprietário do blog de como encontrou o texto da Andressa???
ResponderExcluirrsrsrs
Andressa, me amarrei no teu texto!!! Ele é super poético e muito chamativo, as tuas palavras gritam, perto delas o único silencio possível é o da consciência.
ResponderExcluirVai lá e arrebenta garota!!!!!
Boto muita fé em vc!!!
Beijos!!!!
Que massa!.. um trânsito de interfaces, poesia musicada e escrita, uma grande colcha de retalhos das identidades..rap e repente..uma leitura boooa que me faz encontrar espaços nunca antes conhecidos mais tão vivenciados no cotidiano revisitado com identidades, respeitos e conquistas contemporâneas num varal..com bom som..com bom livro..uma ótima escrita. Fascinante as suas tecituras Andressa;) mulher preta bunita, antiga e sabida dá nisso...ser reconhecida sempre e até na janela de Alessandro Buzzo, outro guerreiro com sentidos e elementos todos afiados para reconhecer uma Rainha. Parabéns Nêga!
ResponderExcluirVish, Buzo, tô vendo aqui que meus amigxs tomaram de conta do seu blog! hehehe... valeu, galera!De ♥
ResponderExcluirBelíssimo texto, muito legal tratar o papel da mulher nesse contexto social.
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