quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Invisibilidade

por Jéssica Balbino

O cheiro da sujeira misturada com a pobreza é insuportável. Permanecer poucos minutos nos dois cômodos da casa é sufocante.
As garrafas pet, sapatos velhos, pedaços de madeira, de ferro e muito papel ficam empilhados e obstruem a passagem para os demais cômodos e dão a casa um aspecto de aterro sanitário.
Quando é questionada sobre o porquê de tanta sujeira acumulada, ela tenta se defender e enrolando a língua, tropeçando nas palavras, diz que não vai se desfazer de “suas coisas”, que para quem observa do lado de fora (tanto da casa como daquele mundo) não passa de um monte de lixo e um convite para os focos de dengue.
É quase incompreensível o que ela quer dizer. Ela é surda. E por ter nascido assim não aprendeu a se comunicar. Por causa disso é analfabeta e dentro desta situação se transforma em mais uma estatística. Ou em muitas.
Brasileiros que recebem benefício por incapacidade de trabalhar. Brasileiros que vivem em situação de risco. Brasileiros que não completamente analfabetos. Brasileiros que ganham apenas um salário mínimo. Brasileiros que pagam aluguel. Brasileiros que não podem se alimentar de forma decente. Que vivem sem higiene. Que tem problemas mentais. Que se transformam em mais um ou são divididos em vários, por categorias, deixando de pensar, sentir e até mesmo de existir. Vira apenas um número.
Se transforma numa pessoa inválida de guerra, mas é uma guerra urbana e social, que deixa seqüelas de variados tipos. Ela se transforma numa aleijada, tipo aqueles que se arrastam pelas ruas da cidade com seus passos incertos queixando-se dos muros invisíveis, que os impedem de serem pessoas – seres humanos.
A maior tristeza, que me invade repentinamente, várias vezes ao dia é a lembrança de vê-la olhando o jornal e tentando compreender quais eram as notícias que aquelas folhas impressas com letras, fotografias e infográficos traziam e que para ela fazia parte de um mundo ainda mais distante.
Me entristeço cada vez que lembro em como deve ser duro o dia-a-dia de quem não entende as letras. Penso que seria então um desperdício não incentivar a leitura daqueles que podem ler e não o fazem.
Todas as vezes que me deparo com esta realidade, lembro-me da história contada por meu pai. Cheio de emoção e também de angústia ele sempre relata que a mãe dele – a avó que não tive a oportunidade de conhecer – certo dia estava folheando uma revista de cabeça para baixo. “Foi duro ver aquilo”, ele sempre comenta, quando conta a passagem.
E voltando a dona de todas bagunça – lixo – acumulada numa pequena casa, por se encaixar em tantas estatísticas e ao mesmo tempo ficar do lado de fora dos padrões impostos pela sociedade, foi despejada do local onde vive sem direito a defesa. Foi atropelada. Não há quem queira cuidar até que ela se recupere.
Nunca fez mal para ninguém. Nunca teve desejo de riquezas materiais. Nunca desejou ter mais do que tinha. Nunca conseguiu expressar sua indignação diante de um mundo ‘injusto’, que escraviza quem já nasce condenado, por nascer no meio de pobres e da pobreza. Nunca conseguiu construir uma identidade. Nunca conseguiu comer carne todos os dias. Nunca conseguiu se desgarrar da cultura negra, como foi ensinada – embora sempre tenha sido loira de olhos claros – nunca conseguiu se ‘divertir’ da forma como dita a sociedade. Nunca conseguiu ser ‘alguém’ e mesmo sendo taxada a vida toda como ‘ninguém’, teve quem chorasse quando a notícia chegou: ela seria internada num hospício. Não, nunca foi louca. Apenas surda e analfabeta. Quando foi comunicada, não conseguiu dizer o que pensava, apenas repetia, da mesma forma enrolada de sempre: “não quero ir. Não quero”.
Mas, novamente a invisibilidade social fez com que as palavras, desejos e vontades dela não fossem respeitados. Todos decidiram o que para eles, seria melhor para ela, sem saber que ela era feliz da maneira como vivia. Antes de se despedir, pediu que quem estava chorando enxugasse as lágrimas, prometeu ficar bem e finalizou “Deus é grande”.
Saiu e continuou invisível. Todos seguiram suas vidas.
Ah, a propósito, ela tem um nome, embora nem todos se recordem ou se dirijam a ela da mesma maneira. Geralda Dionésia de Jesus. E ainda acredita neste último, embora pareça que ele não acredita muito nela. Continua analfabeta.

Jéssica Balbino
* jornalista, escritora e palestrante
contato: jessica@mantiqueira.inf.br

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