Por: Gabriel de Deus
ema.galmeida@terra.com.br
Antes de sair para trabalhar beijei minha esposa como de costume, o dia estava fechado e cinza. Embora fosse primavera não recordo-me de ver uma flor, ou um pássaro sequer. Mas hoje penso que não os veria mesmo que estivessem em revoada sobre minha cabeça, tal andava de preocupações e desgostos. Sentia na boca um gosto que me lembra as cinzas de um cigarro sem nunca ter colocado um nos lábios. Ana tem andado calada, monossilábica e fria comigo. Todo dia subo uma aguda e íngreme colina com o peso de um piano as costas que me está por sugar toda minha saúde. Minha beleza. Minhas pernas pesadas justificaram esse andar exausto. Recordo-me que nesse dia quase fui despedido, respondi mal a meu chefe por pouca coisa, justo nesse dia. Dia que não vi passar, como tantos. Moro há duas quadras de um parque lindo e cheio de árvores, na qual minha filha Stela gosta de brincar. Já nessa época sentia saudades dela mesmo dormindo no quarto contiguo, ela é uma criança adorável e encantadora. O relógio indicava que faltava pouco para as vinte horas, sai do trabalho mais cabisbaixo que o de costume, havia tido um dia péssimo. Vi passarem por mim uma senhora e uma menina de uns 12 anos de idade, idade de Stela e recordei-me do dia em que ela nasceu, era primavera como hoje, lembro do sorriso de Ana, do meu. Lembro de esse ter sido o mais feliz dia de minha vida. Essa lembrança trouxe-me a mente outros momentos assim, como no dia do meu casamento, do dia de meu aniversário ano passado, de minha finada mãe, e curiosamente vi meu parto. Vi minha mãe na cama, vi uma luz que saía dela, luz que ficou forte e lançou-se por todo recinto de uma vez só, nesse momento fechei os olhos, sem parar de caminhar. Recordei de meu primeiro emprego, do primeiro carro, da morte de meu pai, do dia em que conheci Ana e de como fui rude com ela sem necessidade nos últimos tempos. Pus o pé para fora da calçada para atravessá-la e não vi, apenas ouvi um carro a altíssima velocidade há poucos metros de mim. Recordo de um choque muito grande, um forte impacto no peito que me derrubou com violência. Fui jogado para o outro lado da rua no mesmo instante. Com o susto me levantei rapidamente. Ainda meio grogue tentei equilibrar-me, vi tudo rodando, girando sem parar. Caí sentado. Levei a mão à cabeça para procurar sangue, mas nada achei. Não ouvia nada, apenas via tudo de forma turva e cansada. Meus movimentos ficaram lentos, foi quando tentei novamente tentei reerguer-me. Ao ficar de pé vi há alguns metros de mim metade de meu corpo debaixo do carro, que estava resumido a um monte de ferro ao pé de um poste, fiquei desesperado e passei a procurar meus restos, foi quando vi minhas pernas espalhadas pela avenida, com muitas pessoas a minha volta, falantes, chorosas e espantadas com o que viam. Tentei andar mais rápido até um pedaço de meu corpo para prosseguir, levantar-me dali, mas era como patinar no ar, eu não conseguia me mover. Tive calor, uma vontade de correr, sumir, ou mesmo acordar dali e ver minha filha novamente. Não senti o ar a minha volta e isso piorou minha angustia. Algumas pessoas foram embora do local quando começou a chover fortemente. Permaneci ali, parado e estático. Inútil e inerte, alheio. Receio aqui ficar, chorar. Contudo creio que em instantes vou acordar. Isso não pode estar a se passar. Não comigo, o que será de Ana e Stela? Como ajudá-las se meu corpo foi partido em dois e me encontro na chuva sem conseguir sair do lugar, afogado em um ar pesado. Tentei novamente correr, mas nada aconteceu... Precisava avisar Ana do que aconteceu, ela me espera para jantar! Fechei os olhos e vi minha casa de cima, como se voasse, como num sonho... Fiquei satisfeito por vê-la, dentro de alguns segundos estava lá, em casa novamente, procurei Ana no quarto, não a encontrei, procurei por Stela e não tive resultado. As duas estavam na sala, falando com um homem de preto e capa de chuva. Não conseguia ouví-lo, mas tinha um ar pesaroso nos lábios quanto ao que falava para as duas, que se puseram a chorar copiosa e desesperadamente. Cheguei perto de Ana, e falei onde estava, que fosse me buscar, chamar alguém, quem sabe desse tempo de algo.. Mas ela não me ouviu. A pequena Stela estava pálida e sem reação, sem saber o que fazer. Foram consoladas pelo gentil homem que agora pude reconhecer, era Francis. Velho amigo meu, amigo de todas as horas. Há anos não o via. Embora gostasse dele como se fosse meu irmão não me agradou vê-lo em minha casa, algo me palpitava ao coração, algo que não gostava de sentir. Fiquei agachado no canto da sala escura de minha casa vendo-o abraçar-se em Ana. Ela sempre foi uma mulher muito bonita. Senti um fogo tomar conta de mim, uma vontade de feri-lo, machucá-lo. Fiquei novamente de pé e tentei agredi-lo, porém em vão. Nenhum golpe meu surtiu efeito, não consegui tocá-lo. Estava exausto! Pus-me num canto qualquer do nosso quarto, sentado por dias. Ela demorou a chegar muito penosa, muito triste. Era quase de manhã quando se levantou do sofá em que estava e tentou dormir, foi quando tentei falar-lhe que estava ali, junto a ela, mas não era ouvido. Abracei-a e comecei a chorar, ela não conseguiu dormir, estava agitada. Abracei-a com mais força e quanto mais força eu usava mais agitada e nervosa ela ficava, mas tinha que ajudá-la. Era minha missão como seu marido. Decidi ali que seria para sempre seu protetor, sem deixar jamais que algo lhe acontecesse, seja o que ou quem quer que queira fazer-lhe mal.
No dia do meu enterro ela estava pior, cada vez mais magra e pálida. Fiquei ao seu lado o tempo todo caso Francis ou mais algum atrevido viesse perturbar-lhe a paz. O cemitério estava definitivamente lotado, havia muitas pessoas lá, não somente para meu funeral e embora ninguém me ouvisse, alguns me olhavam, mas no momento não vi nada disso, estava compenetrado em fazer a segurança de Ana. Cresci em mim quando vi aproximar-se dela Francis e mais um amigo. Gritei em seu ouvido que ficasse longe dela, mas ele não deu atenção. Levou-a um canto e disse que sentia minha falta, que estaria à disposição dela e de Stela para o que precisasse. Disse a ele novamente em claro e bom som que não precisava, eu estaria ali para sempre e proveria elas no que faltasse. Com a mão empurrei-lhe o peito, mas ele nada sentiu. Quando o vi anotar o telefone dela em um papel corri para o tumulo e deitei no pedaço que restara de mim para levantar-me novamente e fazer aquele traidor entender de uma vez por todas que ela era minha mulher. Tentei exaustivamente reerguer-me, mas sem resultados. Despediram-se e fiquei por horas mais aliviado.
Ele visitou nossa casa por meses a fio, ainda contra a minha vontade. Stela, que ficara praticamente muda depois que saí do seu campo de visão, estava começando a se soltar com aquele sem-vergonha. Ana também, já esboçava um sorriso ou outro, passou a gostar da companhia dele. Tinha eu em mente que Ana jamais se apaixonaria por outra pessoa que não fosse eu, ate porque eu estava ali, a protegendo. Pensava isso até que flagrei um pensamento seu em que sentia a falta de uma presença masculina em casa, mas não apenas após a minha morte, mas muito antes de tudo. Tentei gritar com ela, o que estava ela pensando a meu respeito? Ela lembrou-se de mim como alguém fraco e distante, sem objetivos. Incapaz de dar-lhe segurança. Lembrou-se também da ultima vez em que tinha visto Francis antes do dia da minha morte, em como ele estava bonito no meu aniversário, também no natal. Enfureci-me, tentei quebrar um jarro que estava sobre a mesa, soqueei um vidro da janela, esperneei mas nada chamava sua atenção. Estava hipnotizada por aquele porco nojento. Refletiu que eu era um morto antes de morrer e que Francis era um homem digno e que merecia uma chance. Num ataque de fúria joguei um prato ao chão e um dos cacos cortou seu pé , ela ficou assustada, sentou-se perto da escada e pôs-se a chorar. Percebi que tinha falhado e chorei também, pedindo desculpas, abraçando-a e beijando, mas ela não retribuía aos meus carinhos. Alguém bateu à porta e ela foi abrir, não para minha surpresa era ele. Com as duas mãos tentei empurrá-lo para fora da casa, dizendo que ali não era seu lugar. Mas ele entrou, tomou minha Ana nos braços e a beijou... Cortando meu coração em milhares de pedaços. Tentei agredi-los com força, puxar seus cabelos, tentei pegar uma faca e não consegui. Teria os matado ali mesmo.
Alojei-me num canto de nosso quarto, sagrado quarto e os vi se amarem como adolescentes. Pude sentir um ódio correr em cada veia, mas acima disso uma impotência em ser o guardião de uma rainha que já tinha um rei e não havia espaço para outro. Tive a coroa na cabeça, o cetro em minhas mãos. Mas nunca o respeito de minha amada. Sinto-me aprisionado pelo remorso em correntes que pesam tanto ou mais que o tempo perdido. Mas prometi ficar junto a ela para sempre e é o que eu vou fazer, nem que seja sentado aqui, nesse canto do quarto. Para sempre
terça-feira, 6 de abril de 2010
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