sábado, 15 de maio de 2010

O Dia Que Carla Camuratti Achou Um Sorriso - 2ª e 3aParte

Por: Jose Carlos de Alcantara
josecarlospeu@ig.com.br

As duas comunidades vizinhas são dominadas atualmente por uma mesmafacção criminosa, mas na época em que esta história aconteceu, duasfacções rivais diferentes dominavam uma comunidade cada. Carla Camuratti, a atriz e cineasta, estava em evidência quando nossaCarla nasceu. Não era tão bela quanto a Carla cineasta, mas tinha seusencantos. Tinha, também, dificuldade de enxergar à distância por causada miopia e do astigmatismo, que lhe obrigavam a usar óculosconstantemente. Seus óculos tinham uma bela armação, o que fazia seuencanto não ser tão afetado, muito pelo contrário, tinha um arinteligente e sedutor ao limpar as lentes dos óculos e, vez em quando,ao meditar, mordia uma das extremidades da armação em poses queficariam perfeitas em anúncios de lentes tão comuns nas paredes das óticas. Por ter aparência de professora desde pequena, decidiu que faria o2°grau numa escola que oferecesse o curso de formação de professores.Achava linda a imagem de uma multidão de moças vestidas com blusabranca e saias de pregas azul-escuro, abraçadas com seus cadernos, queinvadiam o centro de Nova Iguaçu vindas do colégio João Luis doNascimento. “– Mãe, quero ser normalista quando crescer!” – DiziaCarla com uma empolgação que resistiu a passagem de tempo, alcançandoa adolescência. Aqui a vemos já na época dos estágios.Conseguiu uma vaga para estagiar na escola Anatole France. Esta escolafica no meio de uma das comunidades, entre a comunidade que podemoschamar de comunidade “A”, e Carla morava no centro da outracomunidade, que chamaremos de comunidade “B”. No meio do caminho,entre uma comunidade e outra, não havia apenas uma pedra, mas umlixão, os urubus, as torres de energia, os campos de futebol, osmortos, as balas traçantes e o medo que Carla sentia ao ter que passarsozinha pelo caminho das torres. Caminhava com receio, olhando para os lados e para trás de si. Nestamanhã, uma mulher levava os filhos para escola, duas crianças que porjá terem nascido no meio da violência, não tinham lembrança alguma daépoca em que a segurança não era uma preocupação tão grande. Ascrianças corriam brincando de bolinha de gude enquanto andavam, e seafastavam um pouco da mãe, que lhes gritava os nomes para queesperassem por ela. A mulher e os dois garotos estavam a cerca de 100metros de distância de Carla, á sua frente. Por mais que andasserápido, não conseguiria alcançá-los. Um pouco menos distante caminhavauma senhora idosa. Andava lentamente, o que fez com que Carla seperguntasse por qual motivo ela não optou por ir de ônibus. Mas, Carlasabia que ninguém iria escolher pegar um ônibus apenas para não passarpelo caminho das torres. Passar pelo caminho das torres é muito maisrápido pois corta caminho. No caso de Carla, de sua casa até o pontoem que deveria descer para chegar ao Anatole, são apenas duas paradas.Quase não dá tempo de passar pela roleta e descer sem pedir para omotorista esperar um pouco. O ônibus contorna um morro numa curva bastante acentuada para adireita, anda por uns 150 ou no máximo 200 quilômetros, faz nova curvapara a esquerda, acelera um pouco e, depois de atingir uns 75 ou 80quilômetros por hora, freia com força para não passar do ponto. Talveznão mais que cinco minutos e todo um microcosmos que é o lixão docaminho das torres some completamente das vistas dos passantes. Masele ainda está lá, mesmo que não o vejam.

O Dia Que Carla Camuratti Achou Um Sorriso - 3ª Parte

Vencida a barreira do caminho das torres, Carla sentia medo, também,de passar pelos homens armados na entrada da comunidade “A”. Paraentrar lá, qualquer pessoa, tinha de responder a perguntas que osbandidos faziam. O que era estranho é que o medo que os bandidossentiam de serem surpreendidos por outros bandidos da comunidadevizinha, levava-os a bolarem perguntas sobre toda a sorte de coisas ede todo grau de dificuldade. Parecia que se uma pessoa fosse capaz deresponder às suas perguntas, não havia a possibilidade de que talpessoa ser um bandido. Certa vez, um rapaz muito bonito, bem vestido e estiloso na aparência,cruzou o pórtico que havia na entrada da favela e foi parado por doissentinelas armados, que lhes perguntaram, note só, os nomes de todosos jogadores da seleção brasileira de futebol na copa do mundo de 1970em ordem alfabética. Os biltres ficaram boquiabertos quando o jovem,com toda a elegância do mundo, começou a alistar um a um os nomes dosjogadores. Várias pessoas que esperavam sua vez de serem alvejadas comperguntas descabidas que cerceavam seus direitos aproveitaram paraentrarem na comunidade enquanto os bandidos ficaram distraídos com ogrande feito memorialístico do jovem rapaz. Lembro-me, perfeitamente, de um entregador de contas de luz que todavez que entrava na comunidade era perguntado sobre o nome e osobre-nome de todos os moradores que receberiam suas contas. Todos osdias o homem respondia bem no início, mas por volta do trigésimo ou doquadragésimo nome, sua memória começava a falhar. Era uma realizaçãohercúlea conseguir gravar os nomes de 825 clientes da concessionária.Os bicheiros começaram a organizar apostas, primeiro se o homemalcançava 50 nomes, depois 70, até que quando o entregador alcançou100 nomes, um apostador recebeu uma bela quantia em dinheiro. Houve um dia, porém, que para surpresa de todos, o homem respondeu deforma exata todos os nomes dos clientes que moravam naquelalocalidade. Muitas pessoas suspeitam até hoje de alguma fraude, oualgum ato de astúcia utilizado pelo homem, mas o fato é que eleconseguiu falar os nomes de 825 pessoas. Mesmo pasmados com o grandefeito do entregador, os malandros continuaram mostrando quem mandavano pedaço. Disseram ter perguntado quantos clientes receberiam suascontas e, segundo eles, a resposta exata era ‘quantos elespermitissem’. O que era verdade. O pobre homem poderia continuartentando, mas imaginou que seria inútil ir contra a burocracia dotráfico. Voltou as costas à entrada da favela e caminhou desolado atéo ponto de ônibus mais próximo. Ao avistar o seu ônibus, fez sinal comas mãos para que parasse, entrou nele e nunca mais foi visto porninguém. Provavelmente perdeu o emprego. O fato é que outrosentregadores de contas de luz surgiram, mas nenhum deles persistiu pormais de uma semana na tentativa de decorar nomes. Era por isso queninguém na comunidade pagava luz. Para Carla as perguntas nunca eram tão difíceis. Já lhe perguntarammuitas coisas antes. Perguntas sem nenhum cabimento, que a faziamrefletir por qual motivo as pessoas se sujeitam a esta forma decerceamento de sua liberdade. Certa vez perguntaram-lhe qual era adiferença dos termos ‘complexo’ e ‘complicado’ segundo o pensamento deMorin. Mais estapafúrdia foi a pergunta “qual o nome do conto deBorges em que um personagem diz ‘o fator estético não pode prescindirde um certo elemento de assombro’?” Desde quando selvagens quetorturam e matam com requinte de crueldade conhecem a literatura de Borges?

Por: Jose Carlos de Alcantara
josecarlospeu@ig.com.br

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