domingo, 30 de maio de 2010

O Dia Que Carla Camuratti Achou Um Sorriso (FINAL)

Por: José Carlos Alcantara
josecarlospeu@gmail.com

A diretora era uma mulher de rosto redondo, mas, bela. Emboraestivesse envelhecendo e as marcas da passagem do tempo estarem sefazendo bastante visíveis, ainda era bastante sensual. Usava óculoscomo todos os professores deste mundo, e conseguia passar muitaconfiança e ser persuasiva ao falar. Ao mandar Carla levantar-se e iraté o banheiro, conseguiu ser persuasiva. Disse que era para elamelhor recompor-se, e ir para sua casa, pois naquele dia não haveriaaulas. Disse, também, que não se preocupasse com as horas do estágio,ela assinaria como se aquele tivesse sido um dia normal. Quando saiu do gabinete, um dos sacripantas que a assustou ao vir emsua direção com um pequeno saco transparente com um dedo sujo desangue dentro, desculpou-se pelo susto que lhe dera e lamentou o fatode que ela veio a desmaiar. Carla aceitou as desculpas, não era culpado homem o fato de ela não estar preparada para ver um dedo decepado.Se o corredor estava mal iluminado, isso também não era sua culpa.Carla ainda estava meio tonta, e ao andar pelo corredor do colégio,mesmo que o prédio tenha passado por reforma recentemente, parecia queela via musgo e infiltrações que vazavam água continuamente no teto enas partes superiores de ambos os lados do corredor. Era como setivesse entrado em um outro mundo, e nesse mundo estranho, a luzoriginava-se de velas em candelabros de cobre. As velas, com suaschamas bruxuleantes que deformavam todos os objetos que tocavam,produziam, pelo seu halo projetado nas paredes, sombras ameaçadorasnum tom que misturava azul da Prússia com terra de Siena queimada. A jovem sentia medo e questionava-se quanto a se dar o próximo passoera algo sensato. Sentia o suor escorrendo por seu rosto e por suaspernas. O seu coração estava acelerado. Seus olhos tentavam compensara miopia, o astigmatismo e a escuridão por se dilatarem. Não sentiu osusto precursor do desmaio e, por este motivo, deu um passo incertorumo à escuridão que se pronunciava infinita e inevitável. Antes dedar mais um passo, pensou que cairia num buraco, talvez numa masmorra.Pensou que estava num velho castelo medieval. Mas, resolveu dar opasso, posto que já fizera este percurso da sala da diretora até obanheiro dos professores infinitas vezes e nunca, nem uma única vez,reparara na escuridão, no musgo, nos vazamento ou nas velas. Decidiuque não devia confiar completamente em seus olhos, e deu o passo rumoà escuridão infinita. Se viesse a cair, era porque sonhava, e seestivesse sonhando, acordaria deste pesadelo em sua casa, com toda aproteção que uma cama pode proporcionar. Ao dar um passo após outro adentrando na escuridão, Carla percebia quea luz, ou o alcance dela, era ritmado pelos seus passos. Á medida quedava um passo à frente, a escuridão retrocedia, também, um passo.Consequentemente deu um passo após outro, dançando pelo corredor,forçando a luz a bailar com ela no ritmo que escolhesse. Um passo emsalsa, outro em valsa, um terceiro em bolero ou ragtime. Ao chegar ao banheiro não mais sentia tanto medo quanto antes. Abrindoa porta, sentiu um cheiro ocre, que por um segundo associou ao odor dovinagre, mas, no segundo seguinte, desconfiou que não era exatamentevinagre o cheiro que sentia. Não havia muita luz no banheiro e Carlaabriu a porta com a mão esquerda e, sem demora, com a mão direitatentou encontrar o interruptor que faria o favor, se alcançado, deiluminar todo o espaço ali. Não encontrou. “Coisa estranha. Havia uminterruptor aqui ainda ontem, ou antes de ontem, já não lembroexatamente de mais nada.” – Pensou ela. A luz que entrava pela janelaera parca e não iluminava quase nada. O chão do banheiro estavamolhado, dava para ver o reflexo da luz que entrava pela janelarefletindo no líquido no chão. Carla sentiu nojo, pois não sabia se aágua era limpa ou suja, deveria ter cuidado para não sujar-se. Davapisadas cautelosas no chão, como que pisando em ovos. Forroucuidadosamente e com delicadeza o assento do vaso sanitário com papelhigiênico. O odor nauseabundo do vinagre, ou de alguma outra coisa quenão conseguia identificar, ficava mais forte ao passo que o banheiroficava mais iluminado. O cheiro fez com que sua boca salivasse, o queaumentava o desconforto e impedia que fizesse suas necessidades comrapidez. Com a demora, teve mais tempo paradeslocar seus olhos míopes pelo banheiro, prestando mais atenção nosdetalhes que anteriormente eram ocultados pela escuridão. Levantou-se, pegou um tanto de papel e secou-se. Olhou ressabiada umamassa disforme que estava num canto do banheiro, em baixo da pia.Parecia ser lá a origem da água no chão e o odor de vinagre. Levantoua calcinha, abaixou a saia e ajeitou-se. Deu um passo em direção àpia, fixou o olhar e, sim, teve a certeza que o que estava vendo erauma dentadura. “Achei um sorriso! Mamãe, achei um sorriso!” – Pensouela, lembrando da pitoresca história da menina que achou uma dentadurae, em sua inocência, pensou ter achado um sorriso.Mas, havia alguma coisa estranha com aquele sorriso. Estava sujo eenrolado no que parecia ser um pano de chão igualmente imundo. A luzque entrava pela pequena janela, iluminava preguiçosamente o pequenobanheiro. Carla, querendo aproveitar melhor a luz, tirou os óculospara limpá-los e assim poder examinar detalhadamente o sorriso queestava vendo ali no chão, bem á sua frente. Teve a impressão que osorriso era para si. Depois de limpar bem os óculos, pensou quefinalmente poderia ver o que havia ali. Recolocou-os com cuidado eassustou-se ao reconhecer uma mandíbula humana e uma arcada dentáriacompleta. Fechou os olhos, mas, infelizmente, a imagem já havia sidocapturada por suas retinas e jamais iria permitir que voltasse aoAnatole. Haviam serrado, provavelmente com uma serra de cortar ferragens emconstrução civil, a cabeça de um rapaz na altura do nariz. Nãoavistara lábios e a pele da face havia sido retirada. Uma das orelhasestava pela metade, enquanto a outra estava intacta. Carla vomitou oque havia comido no café da manhã. Saiu correndo do banheiro e gritoupor socorro, com todas as forças que haviam ainda em seu corpo. Aprimeira pessoa a atender seu pedido de socorro foi Rita de Cássia, afaxineira do colégio, que a abraçou maternalmente. - O que foi minha criança? Não tenha medo, você não está mais sozinha.- É horrível! É horrível! Lá no banheiro tem... – Calou-se, sem saberdescrever exatamente o que acabara de ver. Dona Rita a deixou no chãodo corredor, recostada na parede. A diretora, policiais e outraspessoas estavam se aproximando quando Rita entrou no banheiro para vero motivo dos gritos, mas, saiu quase no mesmo instante gritando,desesperada, “Cruzes! Cruzes!” Ela não conhece latim, e mesmo seconhecesse, dificilmente sairia gritando“Stauros! Stauros!” Mais ou menos no mesmo instante, num outro pontodaquela comunidade, odono da boca de fumo ordenou que tudo aquilo deveria parar. - Não quero mais nenhum morto na minha comunidade. Um morto trás, emmédia, uns dois policia. Se o morto for um policia, ele trás uns dezoutros policia e eu não lucro nada. Ninguém lucra com uma guerra nacomunidade, nem a polícia nem eu. Ninguém sobe um morro pra comprarbagulho, pra gastar dinheiro, com medo de ser grampeado pela políciaou com medo de levar um tiro na cabeça numa guerra de facção. Quem medesobedecer vai ser desovado no lixão. Espalhem essa noticia pra tudoo que é vagabundo, eu quero paz. Ninguém vai morrer na minhacomunidade. Simples assim, por decreto, a morte foi abolida na comunidade onde selocaliza o colégio Anatole France. Para isso, até uma trégua foi feitacom a outra facção. A notícia foi espalhada velozmente. Cada homem,rapaz ou menino que ouviu estas palavras foi contá-las para o primeirohomem, rapaz ou menino que encontrou pela frente. Esta correntecontinuou a crescer até o ponto em que todos os seres vivos nas duascomunidades sabiam de todas as vírgulas da sentença. No interior do colégio a mandíbula dentro do saco plástico pareciasorrir e, se sorrir fosse mostrar os dentes, era exatamente isso quefaziam aqueles 30 dentes ensangüentados. Sorriam debochando de umasociedade que já ultrapassou a barreira entre selvageria e civilidadehá muito tempo, mas que não tinha coragem o bastante de admitir estefato.Carla foi levada para casa pela própria diretora e, do interior docarro, olhava os homens armados que impediam o direito dos homensdesarmados ir e vir, vir e viver. Num esforço descomunal, verteulágrimas como sacrifício em favor dos pecados do mundo. Ela como quetorcia sua retina em busca de mais algumas gotas de lágrima. Já haviachorado muito naquele dia, parecia não ter mais gota alguma de lágrimaem seus olhos. Sentia-se cansada. Não lutaria mais contra o mundo ásua volta. Sentia-se pronta para conformar-se com o mundo à sua voltapassivamente. Chegou á conclusão que sua luta muda contra o sistema,inevitavelmente, resultaria em derrota. Ao descer do carro na entrada da comunidade onde morava, não queriater de responder perguntas sem sentido, e mesmo que estivesse decididareagir ao mundo de forma passiva, poderia começar a agir assim no diaseguinte. E, quando os bandidos puseram-se em seu caminho e lheperguntaram “em quê o movimento de contracultura tinha contribuídopara o pensamento de responsabilidade social das empresastransnacionais”, Carla não suportou a hipocrisia do mundo e deu umgrito com todas as forças que lhe restavam. Libertou de uma só veztoda a insatisfação de ser cerceada no que tinha de mais precioso, sualiberdade. Sua insatisfação quase se fez um objeto concreto ao atingiros homens armados parados á sua frente.- Saiam da minha frente, seus abutres! Não responderei ás suasperguntas descabidas! Monstros! Imbecis! Entrar em minha própria casasem dar satisfações é meu direito! Nunca mais vou responder perguntaalguma! Liberdade ou morte! No momento em que estas palavras foram articuladas pelos músculos nagarganta de Carla, a terra parou em seu eixo e, junto com ela, pararamtodas as pessoas que passava ali naquele momento. Todos ficaram naexpectativa de verem como seria a reação dos facínoras. Algumasmulheres de idade indefinida com lenços coloridos na cabeça e vestidode chita começaram a chorar e se bater em lamento, como aquelasmatronas do Oriente Médio, na verdadeira Faixa de Gaza, que choram ese batem quando o exército de Israel mata seus jovens, que segundoelas, não tinham envolvimento com o terrorismo. As mulheres daquisofriam por antecedência o fim, que davam como certo, da pobre mocinhaque ousava desafiar o tráfico. Mas, sabemos que lei é lei, e nenhummeliante ali seria tolo o bastante para desobedecer a uma lei do chefedo tráfico. Assim, nada aconteceu. Nunca mais pararam Carla ao entrarou sair da comunidade. Era do grito de liberdade que ela precisavapara que o nó que sentia na garganta fosse desfeito. De certo que tudoo que podia conseguir era uma pseudoliberdade amorfa, mas, já eraalgum começo. Melhor uma liberdade ilusória do que nenhuma esperança. Os dedos indicadores e mandíbulas continuaram a visitar os sonhos deCarla por muito tempo. Os zumbis de jaleco se tornaram monstros cadavez mais pavorosos, e ela acordava desejando nunca ter ido ao Anatolenaquele dia fatídico. Anatole, Anatole! Pobre Anatole! Pequeno entreos grandes e eternamente relegado ao esquecimento. Nunca sairá de tium doutor em literatura francesa, por exemplo. Mas, como já disse umavez alguém muito especial: “improvável não é impossível!” Quem sabealgum dia Carla não mais sonhe, e homens não mais morram!Dedicado à Eliane Costa.

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