quarta-feira, 19 de maio de 2010

O Dia Que Carla Camuratti Achou Um Sorriso - 4ª Parte

Por: Jose Carlos de Alcantara
josecarlospeu@ig.com.br

Nesta manhã Carla atravessou o pórtico de entrada da comunidade “A” eos sentinelas erguntaram-lhe o que eles haviam almoçado no diaanterior. Carla pensou um pouco e respondeu que um deles havia comidouma quentinha de ‘bife com fritas’ e o outro ‘frango com batatas’.Passou. Se acertou ou não a pergunta imbecil, não sabemos. Carla andava pelas ruas principais da favela com o mesmo medo quesentia ao atravessar o caminho que ladeava o lixão. “Na comunidadetambém há urubus.” – Pensou ela ao ver que os biltres do tráficotinham, quase todos, nariz adunco, pescoço esticado que projetava parafrente e não para o alto as suas cabeças e, o que ela considerava sero pior, andavam todos com um andar característico que consistia embraços semi-abertos afastados do corpo, passada ritmada que provocavaum movimento de sobe e desce da cabeça e, por fim, uma leve curvaturada coluna que os fazia parecer um pouco corcundas. Era, em suma, umbando de urubus. Sozinha com o seu medo, ela andava olhando para frente ou para baixo,nunca olhava para os lados, pois evitava olhar para o interior dascasas ou para os rostos das pessoas. As portas abertas das casassempre desvelavam o que deveriam ocultar. Eram mulheres descabeladasque passavam todo o dia cuidando das crianças e das demais tarefas dacasa vestidas o dia inteiro com suas roupas de dormir. Homens semcamisa e com bermudas sempre caindo, em resultado de usarem númerosmais altos que os seus. Crianças sempre sujas que pareciam multiplicarde número a cada vez que desviava o olhar. E, o que era o pior detudo, homens com bermuda caindo revelando seus pêlos pubianos juntocom mulheres em roupas de dormir leves e transparentes. Realmente eramelhor não olhar para dentro dos casebres. Sentia-se sozinha, também, quando precisava desviar das motos. Muitaseram conduzidas por pais de família que ganhavam a vida levando aspessoas de um lado para o outro, mas, muitas outras eram conduzidaspor olheiros, aviõezinhos e pelos garotos que eram chamados de vapor. Nas calçadas, havia as tias que vendiam balas e doces, os tios quevendiam legumes e verduras e os garotos que faziam das ruas um mercadode negociação de drogas. Carla nunca quis acostumar-se em ver uma filade vários fuzis encostados em fila nas paredes, como se fosse umavitrine. Para ela, se num determinado dia acordasse e estivesseacostumada, acomodada com esta situação, o seu mundo teria acabado. Desde que era uma garotinha bem pequena, quando sentia muito medo,cantava para espantar todos os males ao seu redor. Sempre quandopassava no meio da comunidade sentia uma verdadeira necessidade decantar. Queria cantar para esconder que estava com medo. Todos os diassentia medo ao fazer este mesmo trajeto em direção da escola ondefazia seu estágio. Então, Carla deixou que soasse em sua cabeça umadas canções infantis que sempre cantava para as crianças em sala deaula. À medida que a letra da música dançava em sua cabeça, ouvia asvozes das crianças cantando. E, ao ouvir o som das vozes cantando amusiquinha infantil, o seu medo se dissipava, pois pensava não estarmais sozinha. É natural que assim fosse, posto que todos os medos quesentimos perduram apenas enquanto pensamos única e exclusivamenteneles. Ela imaginava que qualquer pai ou mãe que precisava sair aindade madrugada para trabalhar e tinha que deixar seus filhos sozinhos,deveria passar o dia inteiro cantando para espantar o medo quesentissem pelo bem estar de suas proles. Se bem que todos estãosozinhos quando há uma invasão da polícia, do exército ou de bandidosde fora da comunidade. A sorte de Carla é que, ao cantar, não percebia o quanto caminhavamais rápido e, constantemente, chegava até o Anatole em menos tempo doque se caminhasse calada, em silêncio. Ao chegar à proximidade doAnatole, percebeu que algo não estava indo bem. Havia uma movimentaçãomuito grande de pessoas, dois carros de polícia e um rabecão dosbombeiros bem em frente da entrada principal do colégio. Foi aRitinha, faxineira do colégio, que recebeu Carla no portão. Haviamuito reboliço, muita agitação, e as coisas que Ritinhadizia saiam atropeladas e se amontoavam, não dando tempo para queCarla entendesse bem o que havia acontecido. Tudo o que ela pôdeassimilar foi que algo ruim havia acontecido. Em seu rosto, aserenidade que a música lhe deu foi sacudida pelas palavrasatropeladas da Rita. - Não vai haver aula hoje, filhinha. – Disse Rita com um sorrisoamistoso, tentando se antecipar à pergunta que Carla fariainevitavelmente.- O que aconteceu? – Perguntou Carla, deixando evidente que tudo o quelhe foi falado anteriormente havia sido em vão.- Eu já não lhe disse filha? Dona Rita envolveu os ombros da jovem com os seus braços e disse, emsussurros quase inaudíveis, que dois homens foram mortos dentro docolégio durante a noite anterior. Rita revelou, também, que estavamcomentando que os mortos deviam quantias irrisórias ao tráfico, e queos policiais que entraram na comunidade foram escoltados pelos abutresque estavam circulando a todo instante na frente do Anatole armadoscom armas que apenas especialistas sabiam o nome.A rua era estreita e terminava num beco sem saída para carros a poucomais de trinta metros após a entrada do Anatole France. Eram quatro oucinco carros, contando com os carros dos legistas, que fechavam a ruanão permitindo que outros carros tivessem acesso ao final dela. Nostelhados de alguns casebres ao redor do colégio, várias outras aves derapina apontavam seus fuzis e metralhadoras para os policiais queesperavam nos carros. Quatro policiais entraram no colégio junto comos bombeiros, enquanto dois ficaram do lado de fora, um em cada carro. Sentiam medo e encolhiam-se por estarem acuados dentro de veículosfrágeis, que não apresentavam nem sequer uma sombra de proteção contratodos aqueles armamentos à sua volta. Ademais, os policiais sabiam queestavam em uma emboscada. Simplesmente não podiam acreditar como seishomens experientes, acostumados a subir morros, foram cair nessafurada de entrar numa favela para acompanhar bombeiros e legistas. Naverdade, não entendiam nem mesmo por qual motivo se precisava delegista num crime como esse. Sentiam-se como o rato na fábula de Kafka que corria desesperado parauma ratoeira no fim de uma sala onde duas paredes se encontravam e, noponto privilegiado da armadilha, cantavam baixinho e tamborilavam comos dedos na porta dos carros. Não admitiam um para o outro o medo quesentiam, mas, era tanto que nem sequer ousavam ficar conversando em péfora dos carros. Eram dois policiais cercados por bandidos por todosos lados. Todo palco estava preparado para uma grande tragédia, eseria uma tragédia não terminar assim o dia. Era inevitável que o gatokafkiano lhes desse a sugestão de mudar de lado, para que elesfugissem da ratoeira, só para devorá-los. Havia pouco tempo que Carla estava estagiando no colégio AnatoleFrance. Os longos corredores do antigo prédio, recentemente reformado,mesmo que bem iluminados causavam-na sempre certa cisma. O medo iaembora na presença de outras pessoas que todos os dias eram quase umamultidão. Alunos, professores, merendeiras, faxineiros, inspetores,etc... Neste dia específico, não havia alunos nos corredores. As aulasforam suspensas e muitos funcionários aproveitaram para não trabalhare voltaram para suas casas. Os corredores estavam vazios, Carlacaminhava temerosa contando seus passos como quem se apega à esperançade encontrar um tesouro, rumo ao gabinete da diretora. Queriaperguntar se poderia ir embora, e se aquelas horas que deveria fazernaquele dia seriam descontadas. Caminhava vacilante quando da porta deuma das salas de aula saiu um homem vestido com um guarda-pó branco,onde se lia alguma coisa no bolso do lado esquerdo do peito, mas queela não conseguiu ler o que era. O homem vestia luvas de procedimentosmédico-cirúrgicos e trazia na mão esquerda um saco transparente quecontinha em seu interior um dedo indicador sujo de sangue, mas járessecado. O homem era da perícia e assustou-se, também, ao ver umajovem surgindo de forma inesperada em sua frente. Para aumentar osusto do homem, Carla gritou histérica como as mocinhas em filmes deterror quando estão prestes a morrer. O grito de Carla ecoou por todos os corredores vazios, e seu ecoentrou sem pedir licença poética em todas as salas de aula. No mesmoinstante que ela virou-se para o lado oposto ao qual caminhava,visando correr para se afastar do legista, deparou-se com váriosoutros homens. Eram policiais e outros legistas, além do inspetor docolégio e da diretora, mas, a sua mente, perturbada com o susto queacabara de levar, via apenas vários outros homens vestidos comguarda-pó portando vários outros sacos contendo indicadores. Desmaiou. Ao acordar, a primeira imagem vislumbrada foi o rosto rotundo dadiretora bem perto do seu. Dizia de forma doce seu nomeenquantopassava docemente as mãos em seus cabelos. Evocava calma,mesmo naquele instante tão delicado para uma demonstração de calma, aopegar suas mãos e tentar lhe passar força. Com todo este carinho, foilembrando pouco a pouco a causa do desmaio. Viu, novamente, como quenum flash, os homens, todos saindo ao mesmo tempo das salas do imensocorredor, cada um com um saquinho com um indicador em seu interior.Suas pupilas se dilataram e ela olhou rapidamente para todos os lados.Estava muito assustada. Mas não havia homens nem dedos indicadoresdecepados naquele ambiente. Tais imagenspavorosas davam lugar a armários-arquivos, paredes com quadros quereproduziam obras de Monet, alguns vasos com belos arranjos de flores,e o tom plácido em que foram pintadas as paredes. Agora, reinavanovamente a paz. Ficou a par de tudo o que acontecera, e envergonhou-se dos risos queacabou causando aos legistas e aos policiais. Tomou um copo de águacom açúcar e começou a compreender que chacinas são coisas tão comunsquanto o ar que se respira, estando em todas as partes da cidade. Mas,nada disso era motivo para desmaios, nada disso é um fato socialsignificativo no subúrbio.

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