O ônibus
Por Jéssica Balbino*
O penteado que ela fez pela manhã já começa a se desfazer. O terninho usado durante todo o dia também já está suado. Ainda bem que ela não precisa mais levar marmita. Recebeu um aumento e agora, gastando quase todo salário, dá para comer em restaurantes e não precisa mais carregar potes para cima e para baixo e nem sujar a bolsa nova que comprou em 10x no crediário de uma loja de departamentos. É couro mesmo. Todas as meninas do serviço querem ter uma igual. As do bairro também, embora estas, coitadas, não tem a mesma sorte ela.
- As garotas do bairro só pensam em se casar. Ter filhos. Eu quero um marido rico e curtir a vida - pensa.
Reflete sobre isso enquanto entra no ônibus e se senta. Ainda não tem um carro porque o salário é curto, mas pretende financiar um no ano que vem.
O único banco vazio é aquele vermelho, próximo ao cobrador. Ela senta, mas não esquece de dar um sorriso para ele, que faz um gracejo e atrasa a passagem de um estudante pela catraca.
Ele puxa papo e ela responde, mas continua olhando-o com ar de superioridade.
- Jamais vou namorar um cobrador. Com o salário que ganham estão fora dos meus planos. Coitado desse. Pensa que eu estou dando bola para ele. Gosto mesmo é de vê-lo babando em mim - gaba-se.
Tira o celular as bolsa - que está pagando a prestações na mesma loja em que comprou a bolsa - coloca o fone de ouvido e ouve a música sertaneja do momento.
Gosta de mostrar as pessoas do ônibus que tem um celular moderno e bonito.
- Com os salários de fome que ganham e os milhares de filhos que tem para sustentar nunca poderão comprar um como o meu - imagina.
Concentra-se em si mesma e pensa em como poderá convencer o namorado a deixá-la ir no show da dupla que agora soa aos próprios ouvidos.
Ignora a senhora que está em pé, na frente dela, tentando se equilibrar na condução cheia, enquanto carrega sacolas de supermercado, uma bolsa e se preocupa com as feridas cada vez maiores na perna.
Não consegue se ouvir a música toda porque o cobrador volta a conversar. Responde qualquer coisa. Agora quer que ele fique quieto. Ela precisa pensar no que vai dizer ao namorado ou no que pode fazer para que ele não brigue por ela ir ao show e ainda ajude ela a pagar o ingresso.
Quer avaliar as investidas do chefe também.
- Quem sabe não rola um aumento ou uma promoção? - se pergunta.
- Ei moço. Meu troco está errado.
- Como errado? Você me deu R$ 10. Aí está. R$ 8. Vocês não conferem direito e ficam reclamando. Tá pensando o que? Que eu não sei fazer meu serviço, é? - esculacha o trabalhador.
Ele pendura a mochila nas costas e fica quieto. Está cansado da estupidez das pessoas em todo lugar. Com o dinheiro que acaba de faturar com a falta de atenção ao voltar o troco do cobrador poderá comprar biscoitos recheados para as crianças.
Sorri intimamente e acredita que tudo é providência de Deus. Passa o restante do trajeto orando silenciosamente.
O cobrador não lhe dá mais atenção e começa a conversar com a moça.
- Puxa. Seu namorado é um sortudo mesmo hein.
- Pois é. Mas vai perder a sorte se não me deixar ir ao show.
- Por que? Ele não gosta que você saia?
- Não. Ainda mais que vai estar de turno e não vai poder ir comigo.
- Ah. Mas se fosse comigo eu também não ia gostar. Se bem que se eu tivesse uma namorada assim, até perderia o emprego para acompanhá-la ao show. Não pode deixar solta não.
- Pois é. -
Ela quer encurtar o papo. Está cansada e precisa pensar no que fazer para ir ao show. Ele não está ajudando em nada. Fica feliz ao ver que o ônibus parou e mais passageiros estão entrando.
Finge dormir, mas canta baixinho junto com a música.
O cobrador não consegue tirar os olhos dela. Acha que ela tem um cabelo lindo e mesmo despenteado deixa o rosto dela ainda mais desenhado.
Atrasa a catraca para um estudante. Não ajuda uma mãe que está com um bebê no colo e faz cara feia para um gordo que se esforça para girar a roleta.
Imagina o que faria se ela lhe desse bola.
- Uma gostosa dessa sozinha no ônibus esta horal. Ainda bem que ela está sentada, senão esse bando de safado estaria encochando esta delícia - imagina.
Pelo retrovisor o motorista olha para a moça ao mesmo tempo em que pisca para o cobrador.
Se desconcentra e não para para os passageiros que querem desembarcar.
- ô motorista. Vamos descer aqui ! - berra um homem.
- ô motô, tá esquecendo o ponto? - completa uma senhora.
Ele frea bruscamente e finge que é por conta do semáforo. Não abre a porta e esnoba as pessoas que terão que descer quase 1km a frente.
- Bem feito. Esse povo pensa que pode fazer o que quer dentro do ônibus só porque estão pagando. Vão ver só - pensa enquanto toca o veículo adiante.
Quando para, torna a olhar para a boca da moça, que canta baixinho a música que ouve. Imagina o que gostaria de fazer com ela. Fecha a porta antes da hora e prende o braço de uma criança. Não liga para os protestos do pai. Responde aos gritos e arranca novamente.
A senhora que está em pé em frente a moça quase cai. As pernas doem demais e ela já não sabe o que fazer da vida senão enfrentar o dia-a-dia.
Acha o motorista um estúpido mas não pode fazer nada. Se espreme num canto para dar espaço a um senhor que acaba de entrar, escorado numa bengala.
- Não adianta ter acentos reservados. As pessoas não respeitam - diz ele.
O motorista ignora e arranca novamente com o ônibus. Ele quase cai.
A senhora apenas sorri. Ela já se acostumou e não vê a hora de chegar em casa. Torce para dar tempo de chegar antes da chuva, assim vai conseguir subir os móveis e evitar que eles sejam levados com a enchente.
A moça não ouve a observação do idoso. A música está alta demais nos ouvidos e ela ainda não decidiu se deve jantar com o chefe no meio da semana.
- Até que ele não é tão feio. Apesar do mau-hálito, é um coroa ajeitado - considera.
Ao olhar uma moça de saia curta na rua o motorista se desconcentra novamente. Não para no ponto para os passageiros que querem embarcar.
- Gente ignorante. É bom que eles aprendem a dar o sinal antes. Ficam mais espertos - ri junto com o cobrador.
Ninguém tem coragem de ligar na concessionária e reclamar do motorista. Alguns acham que é desnecessário. Que ele pode ter família e ficar desempregado não será bom. Outros acreditam que não tem este direito.
Fica por isso mesmo.
A viagem de quase 40 minutos segue.Uma jovem com um bebê no colo pede para ele parar num trevo distante de qualquer outro ponto. Ela mora na zona rural e ainda terá que andar um bocado. Ele finge que não escuta e segue. Ela implora. Ele diz que não pode desobedecer as regras da empresa. Ela grita e desce do ônibus. Nesta hora começa chover.
A senhora das feridas na pernas perde o apoio ao se lembrar que a casa vai encher de água se ela não chegar a tempo.
O motorista se esquece de todas as regras que infringiu até então e se torna, de uma hora para outra ele passa de funcionário rebelde para puxa-saco do patrão rico e se esquece que é tão escravizado quanto aqueles que ele esculachou somente naquela viagem.
O ônibus chega ao ponto final. A moça dá um sorriso para o cobrador. Continua com o fone nos ouvidos e a música. Não conseguiu pensar em algo para dizer ao namorado, mas tem certeza que vai ao show. Ainda pensa se deve aceitar as investidas do chefe, afinal, poderia conseguir arrancar um carro dele.Não seria tão mal assim. Não agüenta mais usar o ônibus como transporte, mesmo quando consegue se sentar.
No outro dia, antes das 8h ela pega o ônibus novamente.
Não sorri para o cobrador pois está de mau humor.
- Deus me livre deste velho chato - pensa. - Logo cedo e o ônibus já está cheio, com gente pobre e fedorenta - reclama intimamente.
Liga a música do celular, coloca o fone no ouvido, passa a roleta e se senta, novamente no único banco disponível. Desta vez ele é amarelo. O banco também destinado aos idosos, deficientes, obesos e gestantes.
“E daí? Eu também pago para estar aqui. E mais, sou melhor que todos eles. Eu tenho beleza e um chefe que gosta de mim”, pensa.
Esquece que ao voltar já não tem mais penteado bonito e a roupa fede como a de todos. O salário-miséria é quase o mesmo. Os sonhos é que são diferentes.
Parte para mais um dia na senzala moderna assim como todos os 120 ocupantes daquele veículo onde cabem apenas 80.
* Jéssica Balbino – mineira, 24 anos, moradora da periferia de Poços de Caldas, jornalista formada, autora do livro Hip Hop – A Cultura Marginal, integrante do livro Suburbano Convicto – Pelas periferias do Brasil, colunista do site Ciranda Internacional de Informação Independente, e do Literatura Periférica defendendo as causas da cultura hip hop. Voluntária de trabalhos com hip hop na periferia, atualmente atuando como repórter no Jornal Mantiqueira, idealizadora da série de reportagens Ás Margens da Sociedade, com pessoas de muito conteúdo e excluídas do restante da população.
Mantém o blog Cultura Marginal: www.jessicabalbino.blogspot.com
sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010
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