O ônibus III
por Jéssica Balbino
Entra esbaforida no ônibus.
- É todo dia a mesma rotina – reclama para si mesma.
Esta puta da vida. O cabelo está encharcado da chuva. A roupa também. Ainda amarga o fumo que levou do patrão por ter ido trabalhar sem uniforme. O pior é que não pode lhe dizer a verdade:
- Eu vim trabalhar de jeans porque a calça do uniforme está suja de porra de um sujeito super tesudo, que eu nunca vi, mas que me fez gozar como eu duvido que você jamais fará.
Conteve o ímpeto, inventou uma mentira qualquer, se fez de coitada e conseguiu arrancar mais uma cantada dele.
Novamente passou na roleta e hoje nem deu atenção ao cobrador. Só reparou que não almoçou quando colocou o troco na bolsa e notou o dinheiro do marmitex lá, intocado.
A única fome que sente é a de ser comida. Bem comida. Sonha com o ‘tarado’ do ônibus.
Resolveu chamá-lo assim para si mesma. É uma forma carinhosa de se referir ao sujeito com cara de pedreiro, mal cheiroso e da pica mágica.
Fica em pé apesar dos lugares vagos. Quer ficar assim. Espera ansiosa por ele. Esquece que quer ir no show da dupla e já nem deseja, com tanto ardor, um carro.
Aliás, o único ardor que sente é na boceta, que ficou encharcada o dia todo, cheia de tesão por aquele desconhecido.
- Preciso pensar em algo para passar o tempo até que ele entre. Tenho que fingir desinteresse – arquiteta, consigo mesma.
Pela primeira vez em muitos anos não sente o fedor do ônibus e nem nojo de encostar-se à pilastra. Já não se sente tão superior as demais garotas pela bolsa de marca que ostenta e nem pelo emprego.
Entretanto, se sente melhor porque foi capaz de gozar dentro do ônibus, no pau de um sujeito mal encarado.
É a primeira vez que também repara nos idosos que pegam a condução e de forma insistente, olham para os bancos ocupados por jovens, que como ela, fingem não ver que eles mal aguentam ficar em pé, quanto mais se segurar dentro de um ônibus cheio.
Sente uma pontada de dó e agora quer se desconcentrar.
Se força pensar num carro. Tenta arquitetar mentalmente como fará para conseguir um. Se desconcentra toda vez que a porta abre. Procura por ele. Uns três pontos a frente, percebe que ele não vem. Murcha. Não encontra explicação. Procura um lugar para pensar e vê que o ônibus já lotou. Ficou em pé, molhada, sozinha, com tesão.
É carnal. Ela não quer mais viver sem ter a pegada daquele homem bolinando-a.
Sente o frio lhe percorrer a espinha. Fica eufórica. Revê, mentalmente, todo episódio de ontem.
A boceta fica ainda mais molhada. Lateja. Pede pela pica daquele homem. Os pêlos se arrepiam e ela se encosta ainda mais onde está apoiada.
Fica decepcionada pelo fato dele não ter aparecido. Amaldiçoa o motorista que passa pelos buracos de propósito, fazendo aumentar o sacolejo dentro do transporte.
Ouve a conversa de duas educadoras que vão ao seu lado.
Elas reclamam que não conseguem mais conter as crianças do maternal.
Uma exibe marcas de mordida no braço. Foram feitas por um garoto de dois anos.
A outra está toda roxa. Ao tentar segurar uma garota que ameaçava descer as escadas sozinha, forçou o próprio corpo e adquiriu marcas.
Foi suspensa das atividades por dois dias e responderá processo disciplinar.
- Onde já se viu? As crianças pagam para estar ali. Tem todo direito de fazer o que querem - foi o que disse a coordenadora pedagógica ao lhe comunicar que ficaria dois dias em casa.
É bom. Assim poderá lavar as toalhas que estão mofando no banheiro, limpar as gavetas da casa e doar algumas roupinhas dos filhos. Se lembra que o guarda-chuva quebrou e que terá que pegá-los na creche debaixo da garoa fina que teima em cair.
- Ainda bem que meu marido é representante comercial e temos carro, assim ele pode pegar as crianças – pensa a acompanhante, que tem o braço mordido. Vangloria-se pelo Passat 87, pago em prestações pelo marido.
Continuam na viagem do ônibus.
Atenta as conversas que nunca ouviu, a garota não esquece de reparar que a cada ponto fica mais distante de sentir aquele pau novamente roçando na sua bunda.
Lembra-se que nunca se masturbou. Se pudesse, conheceria o próprio corpo ali, dentro do ônibus.
Não reconhece na própria imagem refletida no vidro.
Do alto de sua confortável cadeira, o cobrador se pergunta porque a garota não parou para conversar com ele hoje. Não consegue enxergá-la de onde está. Teme não vê-la mais e não sabe como poderá puxar assunto na próxima semana, já que amanhã é sua folga semanal.
Suspira enquanto se lembra do sorriso dela. Da bunda girando a roleta. Percebe que vai ficar de pinto duro se continuar se lembrando do rebolado dela naquela calça jeans.
Ignora um estudante que quer passar na roleta. Se ele não liberar o código, o leitor não reconhece o cartão magnético. Dá um grito com o garoto que lhe despertou do devaneio.
O motorista gargalha ao volante enquanto observa a cena e atropela um gato que atravessa a rua. Uma senhora, em pé, apoiada na bengala, perde o equilíbrio e cai sobre o colo de uma mulher que lê um livro, sentada no assento reservado.
A senhora é xingada, humilhada. Vê o saco plástico com os papéis que catou ao longo do dia rolarem pelo corredor do transporte. Se arrepende de ter gasto o único dinheiro daquela condução.
Se molha da mesma maneira e ainda cai. É massacrada no direito de cidadã.
Os gritos chamam atenção da moça, que estava imersa nas próprias lembranças e desejos.
Com a confusão da freada, o garoto que teve o cartão recusado passou por baixo da catraca e o cobrador está puto. Pode perder o emprego por isso.Enquanto esbraveja, outras duas crianças fazem o mesmo.
A senhora que foi derrubada sorri com o canto os lábios. Se sente vingada.
A garota não vê a hora de chegar em casa. Não vê a hora de encontrar o ‘tarado’. Não quer pensar no futuro. Quer um carro. Quer o homem com ela dentro de um carro.
Se cansa das lamentações das educadoras, das travessuras das crianças, daquele cobrador chato, que a canta e nunca faz nada. Do motorista mal educado que humilha todas as pessoas e fica olhando para a bunda dela enquanto ela passa pela roleta. Se cansa da senhora pobre, que cata papel, mora numa casa que encharca com qualquer chuvinha e que cai dentro do ônibus. Se cansa da vida e do próprio cansaço.
O fogo continua queimando-a internamente. Dá o sinal e desce três pontos antes daquele que está acostumada.
Vai até a porta e não olha para trás. Quer se livrar daquilo que a consome. Quer se apagar. Quer se desgastar. Quer se acabar. Quer gozar.
Antes de descer grita: - VÃO TODOS TOMAR NO CU !
(...)
Não vai trabalhar no dia seguinte e o aposentado que entra no ônibus para ir até o centro da cidade receber a aposentadoria de um salário mínimo encontra o banco destinado a ele vazio. Nem acredita e sorri: é o seu dia sorte.
* Jéssica Balbino – mineira, 24 anos, moradora da periferia de Poços de Caldas
jessica@mantiqueira.inf.br
quinta-feira, 4 de março de 2010
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Não estou cansado vou esperar pelo O ônibus IV.
ResponderExcluirEssa sua personagem é porreta, legal.