quinta-feira, 11 de março de 2010

Cenas do Cotidiano

O ônibus IV – A integração
Por Jéssica Balbino*
jessica@pocos-net.com.br


Entra no ônibus e nem olha para o motorista. Está puta. A condução passou com quase 30 minutos de atraso.
- É esse novo sistema. Vou me ferrar e ainda por cima vou tomar um fumo do meu chefe. Desse jeito minhas chances de seduzi-lo vão acabar. Já não fui trabalhar na sexta-feira e agora vou chegar atrasada – pensa consigo mesma enquanto procura o dinheiro na bolsa para pagar a condução.
Passa pela roleta e continua reclamando internamente. Não tem lugar para se sentar e todos dentro do ônibus comentam o novo sistema de transporte implantado.
Ela ainda não teve tempo de pensar sobre isso. Ficou remoendo o fato de tão ido ao show da dupla sertaneja preferida.
Conseguiu que o namorado a deixasse ir. Conseguiu também que ele pagasse. Mas, a gripe que pegou por ter andado na chuva na última quinta-feira a derrubou na cama por todo fim de semana.
Enquanto tomava chás quentes e media a febre, ficou a pensar que a pior febre era a interna, provocada pelo desejo de ser novamente encoxada pelo estranho que a bolinou numa das viagens da última semana. Só de pensar ela sente o calor lhe queimar por dentro. Ainda não conseguiu esquecer e não sabe o que fazer para encontrar o tal homem.
Não consegue se encostar em canto algum e é obrigada a se sustentar nos próprios saltos. Pela primeira vez, se odeia por ter que ir trabalhar toda arrumada. Sabe que nunca vai conseguir chegar no serviço parecendo uma executiva ou administradora. Não há salto, roupa passada ou cabelo arrumado que resista a um ônibus cheio.
Esta é também a primeira vez que não consegue se concentrar em si própria. Vê que todos os lugares estão cheios e sabe que a chance de que alguém se levante no meio da viagem é nula. Sabe também que vai chegar fedida no trabalho.
Começa a se lembrar das contas que tem para pagar, mas é desconcentrada por duas senhoras que reclamam do novo sistema.
- É atraso em cima de atraso. Os ônibus estão cada vez mais cheios e o valor da passagem para quem não tem o cartão é bem acima do preço – diz uma delas.
- É verdade. Ouvi dizer que vão colocar fogo nos ônibus. Morro de medo – completa a outra.
Ela se põe a pensar sobre isso. É também a primeira vez que numa viagem de ônibus pensa em algo diferente do que a própria vida. Não tem opinião formada e não sabe bem o que quer. Tampouco como o sistema irá afetar a sua vida.
Outras pessoas entram no ônibus. Um homem grita com o cobrador e chama atenção de todos. Ele afirma que o sistema debitou R$ 2 ao invés de R$ 1 do cartão dele. O cobrador é mal educado e o homem parte para cima dele.
O motorista até que gosta da situação, afinal, ele detesta aquele cobrador novo e metido a inteligente. Odeio os puxa-saco do patrão e como está para se aposentar, nem se preocupa com a insatisfação de todos. Quer mesmo é parar de trabalhar.
Alguns idosos se esforçam para se afastar da briga, mas é inevitável que tomem cotoveladas, socos e alguns pontapés. Jovens estudantes também partem para cima do cobrador, que fica acuado no alto da própria cadeira.
Os passageiros que seguram crianças no colo pedem para descer, mas o motorista se nega a abrir a porta e como o ônibus já está lotado, são quase 200 pessoas num espaço que cabe apenas 80, não para nos próximos pontos.
Tem a mãe, a mulher, as filhas e todas as gerações xingadas pelos ocupantes do transporte.
A moça não sabe como reagir. Tenta voltar aos próprios pensamentos, às contas que tem a pagar, ao chefe que pretende seduzir, ao outro cobrador que a paquera, ao tarado que a encoxa e faz gozar, ao namorado que ela tem apenas por comodidade, aos sonhos de ter um carro e fugir daquele inferno, mas simplesmente não consegue pensar.
Tem vontade de abandonar tudo. De se casar e viver longe dali. De não precisar mais trabalhar. Odeia pegar ônibus. Sente vontade de descer ali mesmo e sabe que não pode. Fica ainda mais irritada quando os jovens partem para cima do cobrador e passam por ela sem notá-la.
- Será que estou feia? Ninguém nem me cantou hoje. Ninguém reparou em mim. Faz 20 minutos que estou dentro deste ônibus e nenhum homem se aproximou – constata, bastante insatisfeita e começando a ficar preocupada.
Contudo, rapidamente tem o pensamento desviado porque uma senhora analfabeta percebe que está no ônibus errado. Por não saber ler, pegou uma linha no sentido contrário. Ela começa a gritar e xingar tudo e todos.
A moça quase se comove, mas deixa de pensar nisso quando a marmita do cara ao lado estoura e molha o pé dela.
- Puta que pariu hein ! Toma cuidado com essa comida podre. E agora? Como vou trabalhar ? – berra.
O cara se desculpa e tenta recolher a comida.
O ônibus chega ao itinerário. Ela chuta a comida e a marmita na mão dele. Que fica sem graça e só pensa que ficará sem comer até o almoço do outro dia. Ele não tem dinheiro para almoçar.
Ela nem liga para isso. Corre para tentar limpar o sapato antes de embarcar no próximo ônibus. Vê que já está mais de 1h atrasada. Se divide entre limpar o pé sujo de macarronada e vigiar se o próximo ônibus não chega.
Se sente pobre. Se sente igual aos demais ali. A superioridade que sempre comprou para si em 72 parcelas de bolsas, sapatos, roupas e celulares fica mínima perto da dependência daquele novo sistema de transporte infernal que ela tem que agüentar e se sujeitar.
Se odeia. Odeia não ter sido xavecada nesta viagem. Odeia o negro que deixou a marmita estourar no pé dela. Quase sente pena de si mesma. Vê o ônibus chegando. Corre, tenta se sentar e é empurrada pela bengala de um deficiente físico.
Ele joga o corpo no banco e se acomoda. Mais uma vez ela vai em pé. Paga o dobro pela passagem por não ter o cartão.
Quando chegar na empresa, vai pedir reembolso, senão, nada de almoço no restaurante da esquina.
Tenta lembrar do êxtase que sentiu ao ser encoxada, mas logo é acordada do devaneio –por quem entra no ônibus e tenta se acomodar. Ouve as reclamações e mais ameaças e incêndio contra a empresa concessionária do transporte.
Uma mulher puxa papo:
- Nossa, ficou tão ruim esse transporte né, moça?
- Pois é.
- Onde eu faço o cartão?
- Não sei, paguei em dinheiro.
- Esses mercenários da empresa só pensam neles. E ainda tem estes motoristas e cobradores mal educados.
- É.
- Você está indo para onde?
- Trabalho.
- Sim, mas onde fica?
- No centro.
- Uai, este não é o ônibus da zona leste?
- Não. Esta escrito ali.
- É que eu não sei ler, sabe?
- Aham.
- E agora?
Se vira e deixa a mulher falando sozinha. Odeia analfabetos. Apesar de ler apenas o necessário, não gosta destes miseráveis. Acha que eles atrasam o mundo.
Vê uma jovem, assim como ela, arrumada para trabalhar. Ela se apóia de alguma maneira e abre um livro de capa azul. Não tem nada escrito.
Se põe a imaginar como deve estar interessante para ela ignorar o que se passa a própria volta. Não consegue. Odeia também quem lê demais.
- Deve se achar inteligente – pensa.
Percebe que novamente nenhum homem a cantou. Nem mesmo o mocinho que vai em pé ao lado dela conversando com uma gordinha. Eles tem um papo meio socialista sobre como o sistema de transporte poderia ser mais eficiente se fizesse algumas mudanças.
Ela os odeia também, afinal, não consegue acompanhar o raciocínio. Não vê a hora daquele dia acabar e ela se deitar e sonhar com o tarado estranho.
Esta parte do itinerário transcorreu sem brigas e os 25 minutos duraram menos do que era esperado. Ela desceu e correu para o trabalho. Não vê a hora de voltar às 18h.
(...)
Entra no ônibus as 19h30 e tenta conter as lágrimas. Só não consegue esconder o rosto vermelho de choro prolongado.
Passa na roleta e ao ver que não conseguir se sentar, desiste de manter a pose e soluça alto, desejando que o cobrador fosse aquele idiota que a xavecava eternamente.
- Por onde ele andará? – se pergunta.



* Jéssica Balbino – mineira, 24 anos, moradora da periferia de Poços de Caldas, jornalista formada, autora do livro Hip Hop – A Cultura Marginal, integrante do livro Suburbano Convicto – Pelas periferias do Brasil

Um comentário:

  1. Poxa é realmente fascinante essas estórias de ônibus que você relata, legal mesmo.

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