O ônibus II
Por Jéssica Balbino
São 19 horas. Ela trabalhou o dia todo e novamente volta, pega o mesmo ônibus. Olha para o cobrador, dá o mesmo sorriso de ‘eu sou tentadora mesmo’ e não encontra um lugar disponível.
- Velha maldita. Tinha que se sentar enquanto eu passava na catraca – pensa, ao guardar as moedas do troco na bolsa. – Bem feito para mim. Se eu não ficasse me engraçando com este cobrador feioso e pobre, teria conseguido me sentar.
Se equilibra como pode e coloca novamente os fones de ouvido. Desta vez ouve a música lançamento da dupla. Ainda não conseguiu convencer o namorado a deixá-la ir no show. Também não se decidiu quanto às investidas do patrão. Na verdade, não quer pensar nisso. Não vê a hora de chegar em casa e tomar um banho.
Se sente suja por fazer o trajeto de ônibus. Não aguenta a mistura a mistura de odores que se forma naquela massa de pessoas. Se sente melhor do que todos ali. Odeia precisar deste meio de transporte.
- É inevitável. Preciso de um carro.
Resolve que vai sair com o patrão. Talvez consiga arrancar dele uma promoção ou mesmo um dinheiro extra.
- Isso não é prostituição – garante a si mesma, sem confiar no que pensa.
A cabeça não para e fazer a viagem em pé é bem mais complicado. Deveria ter se afastado um pouco mais do cobrador, que não para de fazer perguntas e tentativas de puxar assunto.
- E aí, seu namorado te deixou ir ao show? – questiona.
- Ainda não tive tempo de resolver isso com ele. Mas ele deixando ou não eu vou.
- Já falei. Se eu fosse ele, não te deixaria nunca andando por aí, nem mesmo neste ônibus.
- Pois é – responde e se afasta quando algumas pessoas passam pela roleta.
No mesmo instante se arrepende. Um homem mal-vestido e mal-encarado para atrás dela. Tenta desviar e já não há mais espaço. Segura a bolsa cara – que ela ainda nem pagou – junto ao corpo e se firma sobre os sapatos de salto alta.
Na primeira curva percebe a pressão do corpo dele contra o dela. Sente que está sendo encoxada. Não tem como desviar.
Pelo reflexo no vidro percebe o olhar de prazer na cara do homem.
- Provavelmente é um pedreiro – considera.
Quanto mais tenta desviar o corpo, mais ele a espreme. Percebe que não tem força para se livrar. Pensa em gritar e logo desiste. Seria muito escândalo. Sente vontade de chorar.
Ela é superior a tudo aquilo. Por que está passando por isso? Se questiona enquanto observa novamente o rosto do homem.
A cada ponto o ônibus fica mais cheio. Ela tenta desviar o pensamento daquilo e não consegue. O hálito quente dele chega até a nuca dela.
A mulher do lado direito não nota. Ela pensa nos filhos. Precisa encontrar um emprego. Pode ser de faxineira, diarista, cozinheira, lavadeira. O que aparecer ela vai aceitar. Não aguenta mais dizer não às crianças. Sonha em poder comprar bolachas e leite de caixinha todos os dias.
Por outro lado, precisa encontrar uma creche para deixá-los. Ouviu no noticiário que faltam vagas para mais de 300 crianças. Como ela poderá fazer?
Sozinhos ela não vai deixá-los. Ainda tem fresco na memória o enterro do filho da vizinha, que sozinho em casa ateou fogo em todo cômodo e morreu asfixiado.
Do lado esquerdo, dois estudantes conversam. Com as mochilas jogadas nos pés, eles comentam sobre os novos jogos e combinam matar aula no dia seguinte para irem à lan house.
- Jogar online e em turma é bem mais divertido.
- Isso mesmo, mano. Dá maior gás ver quem ta ganhando, quem é melhor, quem tá perdendo.
- Mas e aí, como você vai arrumar o dinheiro?
- Não comi o lanche hoje e amanhã vou fazer o mesmo, invento um xerox qualquer para minha coroa e descolo mais um.
- Firmeza. Vou pegar um com meu irmão também. Hoje ele recebe o pagamento semanal.
A conversa termina ai e este última só não revela que pegar com o irmão é o mesmo que se apropriar do que não é seu. Há algum tempo desenvolveu o hábito de entrar no quarto enquanto o irmão se banha e pegar pequenas notas que lhe rendem boas horas em frente a um computador nas lan houses do bairro.
A moça tenta se concentrar nestas histórias mas não consegue. Por um segundo não pensa em nada e quando volta a si, não admite, mas percebe que está gostando da situação. Se sente excitada ao ser encoxada por um desconhecido.
Tenta afastar o pensamento de desejo que teima em queimar suas entranhas. Não consegue e se entrega. De leve, se solta e deixa com que o homem mal-vestido e mal-encarado se delicie nela.
Apesar do pouco espaço, empina a bunda oferecendo-lhe o rabo como jamais fez na vida.
Não se reconhece e os sentimentos se misturam dentro dela. Ódio. Vergonha. Desenho. Se sente suja. Se sente uma puta. Tem vontade de correr dali e descer no próximo ponto. Não percebe quando a mesma cena de todos os dias acontece e o motorista deixa trabalhadores esperando a próxima condução que só vem dali a 30 minutos e nem toma conhecimento de quando ele prende o braço de uma senhora na porta traseira por onde os passageiros descem.
Quer morrer. Nunca se entregou facilmente. Gosta de paquerar mas é regulada até para o namorado. Pensa em sair com o chefe em troca de dinheiro e bens materiais. Mas, se entrega a um desconhecido como uma cadela no cio.
Admite, de forma cruel, que nunca fora tomada por um desejo tão violento. Fecha os olhos e se imagina nua, cavalgando sobre aquele corpo másculo e suado que agora lhe envolve por trás.
O homem adora. Todos os dias faz questão de embarcar no ônibus já cheio. Cada dia pega uma linha para não ficar marcado. Quando reparou naquela bunda, não teve dúvidas. Reconhece as garotas carentes pelo cheiro. Sabia que o que ela queria era rola de um homem de verdade. Está quase gozando. Respira forte na nuca dela, que se arrepia toda. Ele sente. Encosta ainda mais o pinto duro. Procura o meio exato da bunda dela. Sente que ela se deixa encaixar e quase cai nos braços dele. Devagar, desde a mão e começa a boliná-la pela frente.
Está acostumado. Diariamente, vadias como ela se entregam desta maneira. Ele sabe o terreno em que está pisando. Dentro de um ônibus todos ficam perdidos na própria vida, imersos nos próprios problemas.
Ela se desespera. Já não sabe se de vergonha, de raiva ou de prazer. Tem vontade de matar aquele homem tão gostos que está se apoderando dela.
Jamais se imaginou nesta situação e menos ainda que iria gostar de tudo aquilo.
Percebe que ele vai gozar e, novamente pelo vitrô, repara em sua cara de prazer.
Quer aquele homem dentro dela. Ainda não está satisfeita. Se imagina fazendo de tudo com ele. Se esfrega mais forte. Mais forte. Mais forte...
Do alto de sua confortável cadeira, o cobrador a procura com os olhos. Não consegue localizar. Vê e não enxerga um idoso que está em pé enquanto crianças ocupam os assentos reservados. Um deficiente visual esbarra numa moça quando procura a saída e é xingado.
Já não liga mais. É escorraçado diariamente pela vida.
Ele olha, mas não vê. A garota que lhe dá moral mas não o deixa aproximar está delirando de prazer, se esfregando num pau desconhecido e torcendo para que aquele momento não acabe nunca.
Sente a calcinha molhada. Gozaram juntos. Isso nunca aconteceu. Não de ser encoxada, mas de gozar junto com alguém. Cansou de tentar com o namorado. Não aguenta mais fingir. Nem sabe porque está com ele. Queria ter na cama um homem de verdade como aquele, que segundos depois, desce pela porta afora, deixando-a vazia e desprotegida.
Nem percebe que a viagem acabou. Conseguiu não pensar no show ou no que vai fazer com o chefe. Não decidiu nada. Se sente estranha e envergonhada. Parece que as pessoas estão todas olhando para ela.
Ao descer, chacoalha a bolsa de uma velhinha que não conseguiu sair da frente a tempo. Corre para chegar em casa. Não percebe que leva uma baita mancha branca – de porra – na calça do uniforme.
(...)
Vai trabalhar de calça jeans na manhã seguinte. Entra no ônibus e procura aquele homem.
- Que horário será que ele vai trabalhar?- se pergunta.
Não vê que quando o ônibus cruza com o do bairro vizinho ele está lá, refletido no vidro, encoxando uma garota que nunca viu. Nem se preocupa se tem ou não lugar. O fogo lhe consome as entranhas.
* Jéssica Balbino
Mantém o blog Cultura Marginal: www.jessicabalbino.blogspot.com
segunda-feira, 1 de março de 2010
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Que texto e que situação, parabéns pela coragem.
ResponderExcluirValeu!